Há muito tempo o bom leitor era aquele que conseguia “ler bem” em voz alta. Eis o motivo da ênfase, durante as aulas de leitura, à expressão oral: ler não como entendimento do texto, mas com a entonação correta, obedecendo a sinais de pontuação (ou será que são esses que nos obedecem?) e de forma tal que aqueles que ouvem compreendam o texto. Embora essa prática esteja vinculada à pedagogia brasileira do século XIX, e à figura do Barão de Macaúbas, ela permanece presente ainda na educação brasileira do final do século XX: aquele que não consegue ler bem em voz alta não tem domínio da “boa leitura”.
Segundo Regina Zilberman (1997), em seu ensaio “Ler ou estudar: eis a questão?”, no final do século XIX “a leitura é também passagem para a literatura”. Os livros didáticos preparam os alunos para ler bons textos literários. Será que esta prática se limita ao século XIX? Temos hoje, ainda, a tendência em não apresentar ao aluno o texto literário longo, mas, antes, fragmentos desses textos, muitas vezes dissociados de seu contexto, que aparecem nos livros didáticos como forma de discussão de determinados temas, denominados de temas transversais. O texto literário assim apresentado acaba perdendo o que tem de precioso: a sua forma, a sua estrutura enquanto arte e se torna, muitas vezes, desinteressante aos alunos, pois esses perdem a visão do texto como um todo.
A partir dos anos 50 se estabeleceram duas vertentes no ensino de Português: a de que o texto literário forma a base do ensino de língua e a de que os textos literários levam os alunos a um “estágio superior” e não ao texto propriamente dito. O objetivo da escola, está, então, além do livro.
Atualmente a escola tem se preocupado com a questão da escolha da leitura e do prazer de ler. Trocou-se a leitura em voz alta, que os alunos deveriam fazer obrigatoriamente, pela busca do gosto. Há uma preocupação exacerbada em relação ao desenvolvimento do gosto pessoal dos alunos em relação à leitura de literatura: esses devem ler aquilo de que gostam e devem, necessariamente, sentirem prazer em tudo o que lêem. O aluno deve escolher o que quer ler. Esta preocupação está baseada no fato de que o prazer da leitura está sempre associado a práticas realizadas “fora” da escola, enquanto as leituras escolares e obrigatórias são comumente denominadas de “chatas”. Será que o que torna a leitura cansativa não são propriamente os livros que são dados na escola, mas a forma como eles são trabalhados e discutidos com os alunos? De que forma o aluno, que ainda não tem o contato constante com a literatura pode fazer opções? Só podemos fazer opções quando temos uma noção, mesmo que vaga, do objeto de nossa escolha.
A leitura deve implicar uma troca entre leitor e livro. Após a leitura há aprendizagem na medida em que haja um posicionamento do leitor em relação ao livro e a leitura. Segundo Maria do Rosário Mortatti Magnani:
A leitura caracteriza-se,(...),como um processo de autoria de segunda ordem, no qual interagem as histórias de leitura do texto e do leitor e em que um determinado texto, além de mediador, é reconhecido e interrogado como objeto singular.
(MAGNANI,1995, p.37)
Em “Sobre o ensino da leitura”, Magnani deixa bem clara a preocupação crescente nas escolas de 1º e 2º graus (atualmente Ensino Fundamental e Médio) em respeitar o “gosto” do aluno, em trazer “textos do cotidiano”, adequados à realidade dos alunos. Ela analisa também o que tem restado dessas práticas escolares, o que, efetivamente, tem produzido essas aulas de leitura. Nada além dos professores verem frustradas as suas expectativas em relação ao desenvolvimento do hábito e gosto pela leitura ou o cumprimento de um dever: os alunos gostaram. Só.
Será que a prática de leitura se restringe a isso?
Esse “gosto”, privilegiado em muitos planejamentos escolares, tem sido ditado pelo mercado editorial e adotado em muitas escolas sob o rótulo de “respeito ao leitor”. O aluno, especialmente os das classes sociais mais baixas, tem sido privados do seu direito de realmente ter acesso à literatura de boa qualidade.
Penso ser possível e necessário questionar essa lógica perversa, de acordo com a qual as práticas escolares de leitura, resumindo-se ao entretenimento, à fortuita repetição do mesmo, à confirmação da experiência imediata e à uniformização de significações, impedem a conquista do direito de buscar o diferente e o desconhecido.
(MAGNANI,1995, p.33)
O “gosto” vai além da simples escolha. Ele pode ser formado na escola e se refere à capacidade do homem de tomar decisões, levando não apenas em consideração aspectos sociais, mas também estéticos e éticos.
A exposição à diversidade de textos leva o aluno a desenvolver essas habilidades. Então ele não deve ter à mão somente aquilo que se refira ao seu “gosto” pessoal, mas sim ter acesso a todo tipo de obra de arte, especialmente a literária. Acredito que a obra literária de qualidade leva o aluno, não somente a desenvolver o hábito da leitura, mas vai além, transformando-o enquanto indivíduo produtor de cultura.
Nesse sentido o papel do professor é fundamental. É por meio dele que o aluno terá acesso aos livros mais difíceis. É ele que o levará a extrair de cada livro, utilizando a vivência de leitura do aluno, as possíveis interpretações, transformando-o em um leitor competente de todo o tipo de texto. Creio que a profundidade do texto literário forma leitores autônomos, pois se alguém é capaz de entrar nesse mundo denso da literatura, entrará com maior facilidade no mundo dos textos informativos.
(...) sobretudo esses textos “difíceis” precisam ser lidos na escola. Uma vez que integram um repertório desconhecido, ao qual ou os alunos não teriam acesso fora da escola ou, mesmo tendo acesso em situação escolar, não conseguiriam ler sozinhos, a orientação do professor e a colaboração dos colegas tornam possível “o primeiro encontro”, a descoberta dessas configurações textuais e avanços na formação do gosto.
(MAGNANI, 1995, p.39)
Acredito que quando há um planejamento de ensino de ensino de leitura queremos ir além do trivial, além da palavra pronunciada sem sentido, como nas aulas de leitura em voz alta; além dos projetos que indicam que os textos lidos “são passagem para um estágio superior além da escola”, além do gosto do aluno, além do sentido literal da palavra, mas à palavra não pronunciada, àquela que habita no interior de cada indivíduo e que, através da leitura, emerge das entranhas.
BIBLIOGRAFIA:
MAGNANI, Maria do Rosário M. “Sobre o Ensino da Leitura”, in Revista: Leitura, Teoria & Prática. Campinas, ALB, nº 25, junho/1995, p.29-41.
ZILBERMAN, Regina. “Ler ou estudar: eis a questão?, in Revista: Leitura, Teoria & Prática. Campinas: ALB, nº 30, dez/1997, p.20-26.

Este blog foi criado com o objetivo de contribuir, com a metodologia para o trabalho com os objetos de ensino de Língua Portuguesa, partindo de atividades que envolvam o uso da língua, como produção e compreensão de textos orais e escritos em diferentes gêneros discursivos/ textuais,seguidas de atividades de reflexão sobre a língua e a linguagem a fim de aprimorar as possibilidades de uso.
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